A ideia de socialismo a partir de uma reflexão histórica

A ideia de socialismo a partir de uma reflexão histórica

A ideia de socialismo a partir de uma reflexão histórica[1]

Thiago Augusto Pestana da Costa

Introdução

    O presente artigo procura discutir o conceito de socialismo[2] utópico e científico proposto por Friedrich Engels, tendo em vista que sua obra pode ser considerada como fonte histórica devido ao tempo e espaço em que foi escrito, que, por conseguinte, dialoga com uma ampla historiografia onde o campo da metafísica é sobrepujado pelo materialismo histórico dialético. A civilização europeia passou a chamada transição[3] da Idade Média para a Idade Moderna seguindo configurações econômicas bastante diferentes. O capitalismo foi, e é visto, como um fator determinante que modificou plenamente a economia europeia – e de todo o mundo –, que no período precedente foi feudal, teve que romper todo o secular sistema econômico em favor de outro mais dinâmico, avassalador e excludente. Não significa que o sistema feudal fosse melhor em relação ao incipiente modo de produção, no entanto, a mentalidade das pessoas mudaria subitamente, e os antigos servos passariam para a condição de proletariados, ou seja, eles trabalhariam em troca de salário fomentando os anseios dos antigos nobres agora burgueses em ascensão.

 
 

“Devemos empregar com precaução a palavra “burguesia” e devemos evitar o termo “capitalismo” enquanto não se trate da sociedade moderna, onde a produção maciça de mercadorias repousa sobre a exploração do trabalho assalariado, daquele que nada possui”, ou seja, os donos dos meios de produção explorando a mão de obra engendrando uma opulência individual em detrimento da participação coletiva (Vilar, 2003, p. 38). Caracteriza-se diante destas circunstâncias a mudança de comportamento cultural, político, econômico e social inserido no processo de “longa duração”.

    Evidentemente, seria necessária uma observação no plano social da civilização medieval para que possamos melhor compreender esta transição. Ora, um mestre detinha o segredo do ofício e para auxiliá-lo em seu trabalho, contratava jornaleiros[4] ou ajudantes – que em troca ganhavam além do aprendizado, moradia e comida.  No entanto, após certo tempo de experiência, o aprendiz poderia abrir sua própria oficina mediante a aprovação da Corporação de Ofício que avaliaria suas habilidades e competências. Para este que almejava ser mestre, era necessário possuir certa quantia de recursos que viabilizasse a abertura de sua oficina. Na visão de Engels (2001), a produção de artigos estava relacionada para o consumo próprio da família ou do senhor feudal e o comércio se dava mediante aos excedentes que porventura fossem produzidos. Os preços eram regulados em Corporações do Ofício[5] onde os mestres não poderiam cobrar além do estipulado pela corporação – a concorrência era mínima.

    Em função disso, estava claramente posto que tais produções medievais não pudessem crescer em alta escala. Seria necessária uma reformulação[6] dos meios de produção onde o homem mais privilegiado economicamente colocaria à sua disposição um vultoso contingente de pessoas trabalhando. Ficaria incumbida dessa missão a velha Europa e a famosa Revolução Industrial, que por si “é um fenômeno complicado; em nenhum lugar ele ocorreu de uma só vez” (Braudel, 2004, p.341). Paralela a ela, a ascensão do iluminismo trouxe à baila questões contundentes que colocariam em xeque os modelos sociais predecessores dando ênfase na razão, muito embora essa estivesse galgada sob a ótica da burguesia. A nobreza medieval se inclinava para a burguesia moderna estendendo sua hegemonia aos lugares mais longínquos de onde pudesse tirar benefícios. A ideia de socialismo como sabemos, estava relacionada aos interesses coletivos que de certa forma causava repudia das elites que não abririam mão de suas riquezas. É evidente que os chamados socialistas utópicos Saint Simon, Fourier, Owen e até Proudhon[7], contribuíram significativamente – cada um com a sua teoria – para a consolidação do pensamento socialista, porém, seria necessário que a teoria saísse do campo das ideias e fosse colocada em prática. Precisamos ter cuidado ao tratar deste assunto para não cometermos anacronismos, sendo assim, um dos novos fatores, ao lado da indústria que colocariam a Europa sob um contexto foi à substituição da troca pela ascensão do dinheiro. Aquela sociedade estamental fora modificada. O capitalismo começou a estender seus braços na Europa e a mentalidade do homem passou a contrapor o lema da Revolução Francesa, sobretudo da burguesia que com sua hegemonia espalhou a miséria às classes menos favorecidas que teve que fornecer sua mão de obra e o corpo para sobreviver[8]. A civilização toma corpo em um vultoso antagonismo de classes e os chamados socialistas utópicos sentiram a necessidade de pensar um modelo de sociedade diferente do degradante sistema capitalista. O pensar demais foi um agravante, era necessário agir, tentar para mudar, porém, não importa o tempo em que estejamos falando, é nítido perceber que foram os interesses das “elites que provocavam os acontecimentos” e “sempre eram muito mais exclusivas do que o público eleitor e normalmente tomavam as decisões fora das vistas de todos” (Gay, 2002, p.37). Sufocados, restava aos trabalhadores exploração[9], esta estendida até o momento que nos ocupa. Tamanhos entraves não estavam repercutindo apenas do micro[10], mas também no macro[11] espaço geográfico.

A hostilidade francesa à Grã-Bretanha era um pouco mais complexa, mas a sua corrente que, como os britânicos, exigia uma vitória total foi grandemente fornecida pela Revolução, o que trouxe ao poder uma burguesia francesa cujos apetites eram a seu modo, tão ilimitados quanto o dos britânicos (Hobsbawm, 2015, p.143).

    Nesse sentido, era necessário para a França, exterminar o comércio britânico para estabelecer sua hegemonia detendo o monopólio mundial. Foi o que vimos Napoleão Bonaparte tentando fazer com o Bloqueio Continental. Ora, como poderia emergir diante a estes antagonismos um sistema socialista onde o individual sempre sobrepujava o coletivo. Era necessária a unificação da classe trabalhadora que sempre foi à maioria em relação à nobreza e burguesia. Eis o cerne da discussão, ou seja, o pensamento metafísico seria superado pelo materialismo histórico dialético que vai de encontro ao coração do sistema capitalista de maneira científica desmascarando os antagonismos dando sentido à vida. Nesse sentido, “somos obrigados a lembrar que o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história , é que todos devem estar em condições de viver para poder “fazer história””, no entanto “para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter moradia, vestir-se e algumas coisas mais” (Marx; Engels, 2010, p.53). Para que isso pudesse de fato ocorrer, seria necessária a unificação do proletariado que segundo Engels (2001) estava em condições extremamente desfavoráveis onde o êxodo rural engendrou um inchaço urbano e as extenuantes jornadas de trabalho não fazia diferença entre homens, mulheres ou crianças.

A Lei de fábricas inglesas de 1833, inicialmente só afetou a indústria têxtil estipulando a jornada de trabalho básica de 12 horas por dia para menores de 13 e 18 anos, para crianças de 9 a 13 anos, 8 horas por dia, além da proibição do trabalho para menores de 9 anos. Os empregadores tentaram contornar de todas as formas a Lei e conseguiram que o Parlamento reduzisse a idade mínima de trabalho para 8 anos e a carga horária de 12 horas por dia inclusive para as crianças (Abendroth, 1970, p. 36-37, tradução nossa)[12].

            Vale ressaltar, segundo Abendroth (1970) que a partir da lei de junho de 1847 a carga horária de trabalho para as mulheres e crianças caiu de 11 para 10 em maio de 1848 e que em 1850 a carga de 10 horas diária abrangeu todos os trabalhadores, sobretudo no primeiro momento, das indústrias têxteis. “As experiências dessa luta inglesa que ajudaram os trabalhadores franceses a impor a Lei de jornada de 12 horas como o mais importante resultado da revolução de fevereiro de 1848[13]” (Abendroth, 1970, p. 37, tradução nossa). A ideia de socialismo começara a sair do campo das mentalidades e começava a ganhar espaço com as grandes paralisações trabalhistas colocando na prática a famosa frase que abre o Manifesto do Partido Comunista: “A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história da luta de classes” (Marx; Engels, 2013, p. 45). A utopia do socialismo se dava devido ao querer mudar, mas impossibilitados de poder mudar. A massa proletária unida passaria a compor o chamado “Socialismo Científico”. Sendo o capitalismo o fruto da contradição do feudalismo, e sua dinâmica exploratória uma doença social, somente através da revolução trabalhista que as coisas poderiam mudar. Assim como o feudalismo fora sobrepujado, o capitalismo também seria, até que a passagem transitória do socialismo engendrasse na mentalidade das classes operárias o sentido de igualdade até a ascensão – conforme Marx e Engels teorizavam – do “modelo ideal” de sociedade, ou seja, a Comunista.

Fonte

Engels, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. Diponível em: pachto://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000064.pdf; Acesso em: 14 nov. 2015.

Referências Bibliográficas

Franco Júnior, Hilário, 1948- A Idade média: nascimento do ocidente / Hilário Franco Júnior. -- 2. ed. rev. e ampl. -- São Paulo: Brasiliense, 2001.

Marx, Karl e Engels, Friederich. O manifesto do partido Comunista – 2ª ed. Tradução: Pietro Nassetti – 12ª reimpressão – São Paulo: Martin Claret, 2013 – (Coleção obra prima de cada autor).

­­_______________. A Ideologia alemã. 3ª reimp. Tradução: Frank Müller. São Paulo: Martin Claret, 2010 – (Coleção obra prima de cada autor).

Capítulos de livros

Abendroth, Wolfgang. Historia social del movimiento obrero europeo. 2ª ed. Barcelona: Estrela, 1970. pp.34-53.

Braudel, Fernand 1902-1985. Gramática das civilizações. F. Braudel; [tradução Antônio de Pádua Danese]. – São Paulo: Martins Fontes, 1989. – (Coleção O homem e a história). pp. 341-361.

Gay, Peter. O século de Schnitzler: a formação da cultura da classe média – 1815-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 25-54.

Hobsbawm, Eric J. A era das revoluções 1789-1848. – 35ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. pp. 133-164.

Vilar, Pierre. A transição do feudalismo para o capitalismo. In. Santiago, Theo (org). Do feudalismo para o capitalismo – uma discussão histórica. São Paulo: Contexto, 2003. pp. 38-40.

Artigos em periódicos

Paiva, Carlos Águedo. - Marx, Dobb, Sweezy e Hobsbawm, e a polêmica acerca da transição do feudalismo para o capitalismo. Disponível em: . Acesso em: 02 mar. 2015.

NOTAS

[1] Artigo apresentado pelo aluno Thiago Augusto Pestana da Costa ao curso de Licenciatura em História, para cumprimento da disciplina História Contemporânea ao professor MS. Rodrigo Martins dos Santos Irponi.

[2] Engels, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. Disponível em: pachto://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000064.pdf; Acesso em: 18 out. 2015.

[3] Sobre a transição, inúmeros trabalhos foram produzidos, entre eles saliento: Paiva, Carlos Águedo. Marx, Dobb, Sweezy e Hobsbawm, e a polêmica acerca da transição do feudalismo para o capitalismo. Disponível em:. Acesso em: 02 mar. 2015; e Vilar, Pierre. A transição do feudalismo para o capitalismo. In. Santiago, Theo (org). Do feudalismo para o capitalismo – uma discussão histórica. São Paulo: Contexto, 2003. p. 38-40.

[4] Jornaleiros eram os sujeitos que trabalhavam e recebiam por dia. Na civilização contemporânea são os chamados freelancers.

[5] A discussão sobre o assunto pode ser observada em: Franco Júnior, Hilário, 1948- A Idade média: nascimento do ocidente / Hilário Franco Júnior. -- 2. ed. rev. e ampl. -- São Paulo: Brasiliense, 2001.

[6] Fernand Braudel nos dá ampla descrição do contexto industrial e científico da Europa com pós e contras para a construção dos moinhos, a eficiência do cloro, construção de estradas e fluidez dos canais para escoamento de mercadorias, por fim a necessidade da burguesia em adquirir mão de obra a baixo custo. Ver: Braudel, Fernand. Gramática das Civilizações. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Sobretudo das pp. 341-361.

[7] Este pode ser considerado o mais revolucionário em relação aos demais, sobretudo com sua ideia anarquista pautada na ausência do Estado.

[8] Engels, op. cit. p.25

[9] Refiro-me ao conceito de “mais valia” de Marx.

[10] Micro no sentido geográfico: cidade, Estado ou país.

[11] Todo o mundo.

[12] “la ley de fábricas inglesa de 1833, que al principio sólo afectaba a la industria textil, fijó horários básicos de trabajo – para menores de edad entre 13 y 18 años, 12 horas; para niños de 9 a 13 años, 8 horas diarias; el trabajo de los niños menores de 9 años quedó prohibido. Los patronos intentaron soslayar en lo posible esta ley; incluso consiguieron que el Parlamento redujera a 8 años la edad mínima para la ocupación laboral de niños y que el horario general de las fábricas, fijado ahora en 12 horas, fuera también obligatorio para lós niños” (Abendroth, 1970, p. 36-37).

[13] “Las experiencias de esa lucha inglesa las que ayudaron a los obreros franceses a imponer la ley de la jornada de 12 horas como el más importante resultado de la revolución de febrero de 1848” (Abendroth, 1970, p. 37).