Fetichização da Memória

Fetichização da Memória

Fetichização da Memória

COSTA, Thiago Augusto Pestana

 

Introdução

 

            Diante da proposta desta etapa, o conceito de fetichização encontra força nos parâmetros tradicionais de reprodução monumental e documental na medida em que os responsáveis de manter o contato com este tipo de material acabam de certa forma, enfatizando termos que podem não ser correspondidos ou regados da veracidade pelo qual foram os fatos. Portanto este texto busca problematizar a discussão sobre este assunto onde a partir do termo fetichização conseguiremos levantar impressões críticas sobre o que foi produzido neste âmbito historicamente.

            Existe uma linha ainda tradicional e conservadora na História que reproduz fielmente o enaltecimento do herói o que chamaremos aqui de fetichização seja dos monumentos ou dos documentos. Em uma entrevista sobre a metodologia da chamada “Nova História”, o historiador Peter Burke afirma que muitos historiadores são relutantes a este modelo de interdisciplinaridade por achar ser inapropriado e arriscado demais. Contudo, se bem sabemos, esta proposta idealizada em 1929 por Bloch e Febvre, em seguida por Braudel segue praticada por uma grande porcentagem de historiadores assim como sociólogos, filósofos e outros profissionais seja de humanas ou exatas. Evidentemente qualquer exagero na construção histórica faz com que o objeto ou momento de estudo passe por uma fragmentação científica passível de crítica como bem explicitou François Dosse em seu livro A História em Migalhas. Muito provavelmente devido à dinâmica capital que fomenta as indústrias editoriais e cinematográficas fizeram com que a História fosse vista como quantitativa ao invés de qualitativa, porém há discordâncias sobre o ponto de vista de muitos estudiosos.

            Memória e fato estão interligados e a partir de um recorte específico pautado na nossa História, ou seja, na História do Brasil esboçaremos esta fetichização a partir do monumento às bandeiras instalada no centro da cidade de São Paulo enaltecendo a figura de quem “desbravou” e “adentrou” o interior do Brasil com louvor e coragem. Para seguir adiante, vale a pena esboçar não só a questão deste recorte como monumento como também a metodologia com que muitos docentes reproduzem a imagem dos bandeirantes nas escolas do Brasil e que por certas vezes a verdadeira História dos fatos são encobertas pela fetichização histórica.

            Em função desta construção simbólica que coloca o bandeirante como o verdadeiro herói desbravador dos terrenos mais remotos é que a nossa crítica se fortalece, sobretudo ao tomarmos nota de que os verdadeiros conhecedores de rios e seus respectivos tipos de embarcações a serem utilizadas eram os indígenas e a força motriz explorada era a do escravizado africano. Conforme a historiografia fetichista vale mais enaltecer a figura dos europeus que por mato adentro montando acampamento conseguisse dar continuidade na sua exploração que não via nada mais além de significante do que aumentar os espaços geográficos para que fosse possível ali se alicerçar uma sociedade. Qualquer intervenção do indígena ou do africano ficaria de fora dos registros fetichistas, pois algo a ser divulgado era o feito de grandes homens conforme os padrões sociais pré-estabelecidos, sobretudo pelo imperador do Brasil. O negro escravizado e o indígena são os verdadeiros heróis que a História tradicional abafa e não fetichiza. Para isso existem organizações contemporâneas que se preocupam em resgatar a memória dos que construíram de fato o Brasil contemporâneo.

            Podemos encontrar também na base documental da Constituição de 25 de março 1824, ou seja, a fetichizada Carta Magna onde com dez membros portugueses e D. Pedro I após dois anos da Independência do Brasil formularam esta que deveria ser seguida e respeitada conforme a vontade do imperados aos brasileiros. Concordemos que o próprio termo “vontade do imperador” faz com que o fetiche histórico ganhe força, sobretudo pela narrativa metódica ou tradicional. O poder centralizador do imperador no Brasil estabeleceria as Leis conforme sua vontade, seus anseios e costumes influenciando diretamente toda a civilização brasileira que se vê oprimida pelo poder monárquico.

            Ora, se o Brasil foi construído pela mão de obra escravizada sendo a cultura brasileira fruto de uma miscigenação conforme nos apontou Gilberto Freyre em seu clássico Casa Grande e Senzala, então porque a História do Brasil enaltece personagens como reis e bandeirantes? A partir da chamada “longa duração” de Fernand  Braudel a nossa História começa por uma desenfreada extração de pau-brasil que em seguida vê no escravizado africano a mão de obra necessária para fomentar a dinâmica comercial externa a partir da cana-de-açúcar, café e outros gêneros como bem sabemos no decorrer da nossa História. Outros personagens deveriam compor o enredo principal desta chamada História do Brasil que deve romper com os anseios fetichizantes a qual uma minoria de grandes figurões da elite ajuda a reproduzir a História dos vencedores. Mais quem são os vencedores? Para quem são atribuídos os títulos de vencedores e por quem?

            Em função destas indagações, problematizaremos a questão monumental e documental procurando novos caminhos que não estes reproduzidos incansavelmente por uma minoria que conseguiu penetrar na mentalidade brasileira seja pelos bancos escolares, pelos livros ou cinemas e novelas. A própria religião católica inserida no Brasil desde o chamado “descobrimento” da América portuguesa faz menção aos tradicionais modos de preservação, manutenção e propagação do culto europeu em terras desconhecidas onde para o cristão ocidental, a nudez do indígena seria simbolicamente um comportamento diabólico em relação ao modo de modus vitae europeu. Não foi respeitada em nenhum momento a identidade cultural e religiosa seja do indígena ou do africano que para cá veio para trabalho forçado como um bem capital e não humano. É preciso um esforço para refletir e repenar até mesmo a questão cristã de um imperador que atribuiu à religião Católica Apostólica Romana como oficial neste Brasil, mas que nada tinha de cristão devido à escravidão. Tal como os muçulmanos colocam uma prece a Alá no início de suas escritas, o imperador brasileiro coloca a santíssima trindade no topo de sua Constituição, porém de que nada convence este grupo acadêmico que por muitos livros percebeu as intenções e postura do regime monárquico no Brasil.

            Vale ressaltar que este documento que escolhemos como objeto de estudo parte de um recorte pautado na questão religiosa documental que acaba por se fazer falsa na medida em que o culto não católico foi restringido pelo imperador de ser praticado em ambientes públicos ou externos a sua morada. Assim o imperador fazia com que apenas a religião católica fosse permitida a todos os campos do vasto território fazendo com que alguns protestantes ou adeptos a outras vertentes religiosas como os da Umbanda ou Candomblé fossem privados de exercerem seu culto ou ritual fora de suas casas. Assim Fustel de Coulanges em seu livro A Cidade Antiga também vai até a antiguidade de maneira majestosa e explica a relação do culto do deus do Lar. Este processo correspondia aos gregos (e fala de algumas ramificações hindus) antigos que prestavam seu culto aos antepassados e derramavam suas libações no solo e na lareira sagrada e que de forma hereditária era ensinado os dizeres sagrados e secretos ao filho – homem mais velho – que ficaria incumbido de manter vivo este ritual após a morte do pai.

            Concluamos então que este termo fetichização pode se certa forma maquiar a História onde os rótulos serão colocados sob o estrelismo dos supostos heróis nacionais numa visão positivista, conservadora e tradicional. Na ausência de documentos escritos a história-problema vai buscar na metodologia chamada de Tradição Oral, a respostas que precisam para que seja possível compreender seu objeto de estudo. Os bens materiais deixados pela civilização precedente a nossa tem às vezes mais a dizer sobre o homem e seu espaço do que uma pilha de documentos descritos por sabe-se lá quem. Não que este quem não tenha importância, mas a nova História parte do pressuposto de que qualquer fonte móvel, imóvel ou sonora é ferramenta suficientemente importante para a construção do saber histórico. Esta fetichização do monumento e do documento apenas legitima a figura de vencidos escolhidos por uma minoria que se viu privilegiada em determinada época na História do Brasil e que foi contaminando a mentalidade dos tradicionais pensadores conservadores brasileiro que por infelicidade do nosso campo de estudos deram as costas para a famosa Escola dos Annales.

 

Referências Bibliográficas

 

BENJAMIN, Walter, 1892-1940 - / A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica / Walter Benjamin; organização e apresentação Márcio Seligmann – Silva; tradução Gabriel Valladão Silva. – 1 ed. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2013, 160 p.;21 cm.

 

BOURDIEU, Pierre – O Poder Simbólico/ Pierre Bourdieu – 14ª ed; trad. Tomaz, Fernando- Editora: Bertrand Brasil ; Rio de Janeiro – 2006.

 

BURKE, Peter.  A ESCOLA DOS ANNALES 1929-1989/A revolução francesa da historiografia. 2ª. ed. Tradução: Nilo Odalia; São Paulo: Editora UNESP, 2010

 

COULANGES, Fustel de. Numa Denis, 1830-1889. / A cidade Antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e Roma / Fustel de Coulanges; tradução de Roberto Leal Ferreira. – São Paulo: Martin Claret 2009. – (Coleção a obra prima de cada autor; 2). 413 p.

 

GOFF, Jacques Le. 1924 / História e memória / Jacques Le Goff; tradução Bernardo Leitão - [et al.] -- Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990. (Coleção Repertórios). Pág. 462 a 476.

 

SETTON, Maria da Graça. Mídia e educação/ Maria da Graça Setton. – 1.ed..1ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2011.